segunda-feira, 29 de agosto de 2011 0 comentários

 Luis Fernando Veríssimo (crônica)









Uma surpresa para Daphne



Daphne mal podia acreditar nos seus ouvidos. Ou no seu ouvido esquerdo, pois era neste que chegava a voz de Peter Vest-Pocket, através do fone.

- Daphne, você está aí? Sou eu, Peter.

Quando finalmente conseguiu se refazer da surpresa, a pequena e vivaz Daphne - era assim que a legenda da sua foto como debutante no "Tattler" a descrevera, anos atrás - esforçou-se para controlar a voz.

- Você quer dizer o sujo, tratante, traidor, nojento, desprovido de qualquer decência ou caráter, estúpido e desprezível Peter Vest-Pocket?
- Esse mesmo. É bom saber que você ainda me ama.
- Seu, seu...
- Tente porco.
- Porco!- Foi por isso que eu deixei você, Daphne. Você sempre faz o que eu mando. Era como viver com um perdigueiro. Agora acalme-se.
- Porco imundo!
- Está bem. Agora acalme-se. Pergunte por que é que eu estou telefonando pra você depois de dois anos.
- Não me interessa. E foram dois anos, duas semanas e três dias.
- Eu preciso de você, Daphne.
- Peter...
- Preciso mesmo. Eu sei que fui um calhorda, mas não sou orgulhoso. Peço perdão.
- Oh! Peter. Não brinque comigo...
- Daphne, você se lembra daquela semana em Taormina?
- Se me lembro.- Do jasmineiro no pátio do hotel? Das azeitonas com vinho branco à tardinha no café da praça?
- Peter, eu estou começando a chorar.- E daquela vez em que fomos nadar nus, ao luar, e veio um guarda muito sério pedir nossos documentos, e depois os três começamos a rir e o guarda acabou tirando a roupa também?
- Não. Isso eu não me lembro.
- Bom. Deve ter sido em outra ocasião. E a pensão em Rapallo, Daphne.
- A pensão! O velho do acordeão que só tocava "Torna a Sorriento" e "Tea for Two".- E a festa de aniversário em que nós entramos por engano e eu acabei fazendo a minha imitação do Maurice Chevalier com laringite.
- Ah, Peter...
- Lembra o pimentão recheado da "signora" Lumbago, na pensão?- Posso sentir o gosto agora.
- Qual era mesmo o ingrediente secreto que ela usava, e que só nos revelou depois que nós ameaçamos contar para o seu marido do caso dela com o garçom?
- Era... Deixa ver. Era manjericão.
- Você tem certeza?
- Tenho. Ah, Peter, Peter... Não consigo ficar braba com você.
- Ótimo Daphne. Precisamos nos ver. Tchau.
- Tchau?! TCHAU?! Você disse que precisava de mim, Peter!
- Precisava. Eu estou fazendo aquele pimentão recheado para uma amiga e não me lembrava do ingrediente secreto. Você me ajudou muito, Daphne, e...
- Seu animal! Seu jumento insensível! Seu filho...
- Daphne, eu já pedi desculpas. Você quer que eu me humilhe?
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Uma surpresa para Daphne

Luís Fernando Veríssimo é considerado um dos melhores humoristas da literatura brasileira. Em que consiste o humor, ou seja, o dado inesperado da crônica "Uma surpresa para Daphne" ? Ao final do relato, vocês se sentiram surpresos como Daphne ?

                                                                                         -professora de Literatura, Mariúcha de Burgos-
sábado, 27 de agosto de 2011 0 comentários

A Moça Tecelã



"Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos  do algodão  mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.

— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.  Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte."

Marina Colasanti
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A Moça Tecelã

Neste conto, a moça tece um marido para em seguida, destecê-lo

Na sua opnião, o que faz com que a moça teça o marido ?

Qual o móvel que a leva, logo em seguida,a destecê-lo?

Associe as duas respostas às situações cotidianas vivenciadas por você em suas "história de amor".
 
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